quarta-feira, 18 de novembro de 2009

segredos e intenções sociais

Durkheim falava da hipótese de ser a moral social, e não a economia ou a tecnologia, o motivo principal e a causa primeira das transformações sociais modernas. Dizia ter sido a difusão da ideia mestra de ser melhor cada um encarregar-se apenas daquilo que sabia (ou aprenderia a) fazer melhor - e, portanto, contar com os outros para lhe fornecerem o que ele próprio não produzia, independentemente das tradições de família e dos privilégios associados - o que levou ao individualismo e à organização da divisão de trabalho nas cidades.
Bem pode dizer-se, hoje, ter sido esta intuição genial de Durkheim uma das mais fortes fontes de legitimidade científica da sociologia e, ao mesmo tempo, um dos segredos mais encobertos da sociologia, há muito desinteressada da moral e das intenções sociais, como aqueles cidadãos envergonhados da sua ascendência.
Actualizar esta hipótese para explicar a globalização daria qualquer coisa como esta: a consolidação prática do individualismo nos corpos e nas práticas contemporâneas trouxe, efectivamente, aumentos de produtividade extraordinários, a ponto de haver muita gente a viver fora da perspectiva do risco permanente - da fome, da doença, da violência. Há muita gente civilizada, no dizer feliz de Norbert Elias. O optimismo do pós-guerra, porém, trouxe ao poder uma geração de filhos únicos convencidos de serem próximos de Deus, a quem, extrapolando fora do contexto a ideologia meritocrática aprendida nas escolas, nos levaram a concordar em oferecer (aos "licenciados" mais bem colocados) a possibilidade de, caso o merecessem, atribuir rendimentos "do trabalho complexo" de acordo com a riqueza produzida.
Os capitalistas, como classe dominante, foram substituídos pelos seus administradores e estes fizeram-se capitalistas sem capital, partilhando os lucros sob a forma de prémios. Como os lucros fossem poucos, as engenharias financeiras possibilitaram recolher hoje os lucros esperados no futuro e assim roubar as próximas gerações - é um mérito como outro qualquer, eventualmente pouco moral, mas ninguém se queixou porque os que disso pudessem ter alguma ideia puderam beneficiar e ... "todos temos um preço" passou a ser a moral profissional dos yuppies. A "confiança" na meritocracia e no futuro passou a ser o grande capital social da nova era, como ficou evidente após o crash de 2008. A actual grande questão moral é a de saber se os administradores, que não estão presos como ladrões, podem e devem continuar a receber a sua parte dos lucros inexistentes, mas esperados e estimados - por eles próprios -  poderem ser recolhidos no futuro.
A desigualdade social deve continuar a ser "estímulo" para o aumento da "produtividade" adulterada em "competitividade"?
Do desfecho desta luta moral dependerá o nosso futuro colectivo. A esperança é que tal luta possa estar ainda em aberto, porque mal encaminhada ela está, sim.

1 comentário:

  1. Não é completamente exacto que os capitalistas tenham sido substituídos pelos seus administradores. Isso pode ser afirmado mas a nível funcional. Apenas. No plano formal, o direito não avaliza nem reconhece propriamente essa substituição. E substancialmente o administradeiro é posto "a mexer" com relativa facilidade. Todavia e não obstante, há a ponderar a dialéctica do senhor e do escravo e também aqui, de algum modo, o escravo se impôs ao seu senhor, porque o senhor alienou a sua capacidade de decisão e isso se tende a manter, seja pela sedução, seja pela incapacidade (trabalhosamente forjada) que veda ao senhor a possibilidade fácil de voltar a ocupar-se da gestão do quanto é seu. Esta distinção de planos ajuda. Não é aparentemente difícil fazer regressar tais servos à gleba onde se geraram. A ideia em cujos termos eles teriam vindo de qualquer "nobreza de toga", é ideia-feita a carecer de comprovação concreta. O que se vê é o oposto, são esforçados rapazes, vindos "de baixo" e com grande determinação gestionária. Acham que o seu êxito é mérito próprio (sentem-se realmente com direito ao dinheiro dos outros) e acham, por isso, que quem não "subiu" como eles, merece a posição onde ficou. O seu fiasco, como risco ou como realidade, deve-se ao azar (são supersticiosos). Mas a miséria alheia deixa-os indiferentes. Os miseráveis merecem sê-lo (a seus olhos). São muito cruéis, em regra. E essa crueza nota-se também nos estilos de gestão. Evidentemente.

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