sábado, 19 de dezembro de 2009

Revolução

Já vários notaram como a actual situação portuguesa reclama uma revolução, como a de 1974. Nas actuais circunstâncias, porém, tal não é possível.
A Grande Revolução foi possível porque foi feita contra Versailles. A Revolução dos Cravos foi feita contra os “orgulhosamente sós”. Hoje não se saberia contra quem fazer a revolução. Isso mesmo o mostraram os jovens dos arredores de Paris e de outras cidades europeias em 2005, e os jovens gregos fez agora um ano. Não se fazem revoluções contra a polícia.
Bruxelas não apenas está longe fisicamente como, de facto, não tem outra existência que não seja a existência virtual. Há quem diga estar a política a ser manipulada pela economia. Mas, de facto, toda a Terra está a ser manipulada por um grupo restrito de famílias cujo perfil sociográfico seria melhor descrito como um directório político global em rede cujas prioridades são a exploração económica do planeta. Quando as coisas são “business as usual” fazem avançar os primazes economistas, com toda a corte de cientistas sociais atrás; quando há crise fazem avançar os políticos, cercados de primazes politólogos e todos cientistas sociais atrás.
As actuais elites descobriram que não precisam de preparar a viagem final para a Lua. Vivem numa aldeia global privilegiada, dispersa pelos melhores e mais bem defendidos lugares do mundo, ligada entre si pela democrática internet, com a única preocupação de poderem ser atingidos seja por desastres ecológicos seja pelas consequências financeiras de algum desastre humanitário.
Como qualquer humano, membros de tais famílias ou seus serviçais podem ser atingidos pessoalmente, mas o sistema é virtual e, por isso, é inatingível. A menos que se acabem os privilégios.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

desigualdades físicas e classificatórias, a mesma luta

A natureza humana é social. Mais do que qualquer outra espécie conhecida, as pessoas precisam de muito tempo para se tornarem auto-suficientes. Mas, de facto, jamais o ficam. Segundo Durkheim, dependíamos tanto uns dos outros, nos tempos da solidariedade mecânica, que tínhamos medo de tudo o que fossem comportamentos diferentes das imitações dos comportamentos já conhecidos. Ainda segundo o mesmo autor, uma vez instalada a solidariedade orgânica, à medida que as sociedades urbanas foram admitindo e até estimulando comportamentos diferenciados, na perspectiva da divisão social do trabalho, por um lado emerge o individualismo - a tensão social que liberta e empurra as pessoas para fora das tradições - e por outro lado uma maior densidade e complexidade das formas de sociabilidade. Na prática, estamos agora mais dependentes da sociedade, não apenas para sermos livres mas também para sobrevivermos.
As ordens sociais, que se distinguiam entre si pelo aspecto físico e pelo lugar central das sociabilidades públicas, eram a forma da solidariedade mecânica legitimar os privilégios daqueles que ficavam dispensados de trabalhar e, ao mesmo tempo, senhores das riquezas que se dedicavam a rapinar. As classes sociais, distintas entre si pelos modos de classificação funcional dos lugares que ocupam, legitimam actualmente as diferenças de rendimentos e de acesso à informação entre os diferentes grupos sociais. Até que novas formas de solidariedade social venham a ser instaladas.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

segredos e intenções sociais

Durkheim falava da hipótese de ser a moral social, e não a economia ou a tecnologia, o motivo principal e a causa primeira das transformações sociais modernas. Dizia ter sido a difusão da ideia mestra de ser melhor cada um encarregar-se apenas daquilo que sabia (ou aprenderia a) fazer melhor - e, portanto, contar com os outros para lhe fornecerem o que ele próprio não produzia, independentemente das tradições de família e dos privilégios associados - o que levou ao individualismo e à organização da divisão de trabalho nas cidades.
Bem pode dizer-se, hoje, ter sido esta intuição genial de Durkheim uma das mais fortes fontes de legitimidade científica da sociologia e, ao mesmo tempo, um dos segredos mais encobertos da sociologia, há muito desinteressada da moral e das intenções sociais, como aqueles cidadãos envergonhados da sua ascendência.
Actualizar esta hipótese para explicar a globalização daria qualquer coisa como esta: a consolidação prática do individualismo nos corpos e nas práticas contemporâneas trouxe, efectivamente, aumentos de produtividade extraordinários, a ponto de haver muita gente a viver fora da perspectiva do risco permanente - da fome, da doença, da violência. Há muita gente civilizada, no dizer feliz de Norbert Elias. O optimismo do pós-guerra, porém, trouxe ao poder uma geração de filhos únicos convencidos de serem próximos de Deus, a quem, extrapolando fora do contexto a ideologia meritocrática aprendida nas escolas, nos levaram a concordar em oferecer (aos "licenciados" mais bem colocados) a possibilidade de, caso o merecessem, atribuir rendimentos "do trabalho complexo" de acordo com a riqueza produzida.
Os capitalistas, como classe dominante, foram substituídos pelos seus administradores e estes fizeram-se capitalistas sem capital, partilhando os lucros sob a forma de prémios. Como os lucros fossem poucos, as engenharias financeiras possibilitaram recolher hoje os lucros esperados no futuro e assim roubar as próximas gerações - é um mérito como outro qualquer, eventualmente pouco moral, mas ninguém se queixou porque os que disso pudessem ter alguma ideia puderam beneficiar e ... "todos temos um preço" passou a ser a moral profissional dos yuppies. A "confiança" na meritocracia e no futuro passou a ser o grande capital social da nova era, como ficou evidente após o crash de 2008. A actual grande questão moral é a de saber se os administradores, que não estão presos como ladrões, podem e devem continuar a receber a sua parte dos lucros inexistentes, mas esperados e estimados - por eles próprios -  poderem ser recolhidos no futuro.
A desigualdade social deve continuar a ser "estímulo" para o aumento da "produtividade" adulterada em "competitividade"?
Do desfecho desta luta moral dependerá o nosso futuro colectivo. A esperança é que tal luta possa estar ainda em aberto, porque mal encaminhada ela está, sim.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Justiça para ricos e para pobres

Faz algum tempo, diria 8 anos, que a sociedade portuguesa assumiu estar a dar cobertura a um sistema de justiça que distingue os "ricos" dos "pobres". De facto, reconhecemos a pouco e pouco aquilo que Jakobs designou por "Direito do Inimigo". Ao contrário da receita doutrinal de John Rawls - que reclamava à judicatura, para fins de Direito efectivo, discriminar positivamente os "pobres" nos tribunais - os sistemas judiciais ocidentais sofreram uma tendência adaptativa relativamente às novas ideologias dominantes e à invasão de legislação avulsa. O resultado prático, verificável, foi o aumento da diferenciação de regimes de justiça conforme a condição social dos arguidos e testemunhas, agravada pelos custos aumentados no acesso à justiça, com o fito de impedir as reclamações crescentes das populações injustiçadas.
A impunidade de uns e a excessiva punição de outros (refiro-me aos resultados penais absurdos e irracionais das políticas proibicionistas) vai de par com o aumento da corrupção, o aumento da sua visibilidade e também da vontade (de senso-comum) dos magistrados em "cumprirem a sua função".
O problema é que, entretanto, a adaptação do sistema judicial ao sistema (neo-conservador e neo-liberal) dominante (corrompido, em grande parte, por falta de regulação) retirou aos magistrados e às instituições de justiça não apenas a credibilidade como também as competências para actuarem conforme o Direito. O arbitrário e o poder pelo poder é o dia-a-dia dos tribunais. Mesmo quando, agora, o sector se enche de brios e quer atacar a corrupção ao mais alto nível.
O pilar judicial do Estado de Direito está refém dos interesses fácticos que o sufocam, por fora e por dentro, sempre ao mais alto nível. É o que temos assistido.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

níveis de realidade

Michel Foucault e Chomsky tiveram, faz muitos anos, um encontro intelectual que ficou gravado: http://www.youtube.com/watch?v=WveI_vgmPz8. O segundo reclamava ser a natureza humana criativa e libertária e, por isso, se daria melhor com uma organização anarco-sindicalista, ao que o primeiro respondeu que de boas intenções está o inferno cheio. Para o francês não é possível imaginar o que vem depois, na história, pelo simples facto de estarmos a pensar, hoje, em condições sociais anteriores à ocorrência de se abrirem novas possibilidades de funcionamento social.
Contemporaneamente, as mesmas questões se colocam para nos entendermos. O nosso primeiro-ministro foi acusado por magistrados do crime contra o Estado democrático, através de escutas ocasionais gravadas a propósito de um caso de corrupção. O acusado argumenta ser necessário distinguir entre a sua vida privada (a tal conversa gravada) e a sua função pública (declarações no Parlamento, por exemplo).
Um semanário, utilizando a informação gravada, acusa o PM de ter mentido ao Parlamento e ao País. O PM responde que oficialmente não tinha que ter conhecimento daquilo que em privado eventualmente discutia com os amigos.
Logo se verá onde o estado-a-que-as-coisas-chegaram nos vão conduzir, em Portugal. Para o que me interessa aqui, a questão é mostrar como os diferentes níveis de realidade, tanto numa discussão intelectual como em debates públicos, fazem uma diferença entre a verdade e a mentira, entre a eficácia e ilusão.
A nível quotidiano - para retomar o exemplo da corrupção mencionado noutro post - a dádiva é uma coisa boa. A nível institucional a corrupção é má, mas às vezes dá jeito para "mexer os cordelinhos" de certos procedimentos que impedem a vida de circular. A nível de Estado a extorsão é um crime contra os valores da democracia, embora possa ser frequente em países com Portugal (não sendo dos piores).
Distinguir os diferentes níveis de forma rigorosa permitirá uma mais adequada modernização da intervenção cívica e, também, evitará a boa consciência entre os criminosos que se desculpem confundindo privado, administração e Estado.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

corrupção ou extorsão?

No tempo do Guterres era outra coisa. Não havia escândalos de corrupção todos os dias, ora no CDS/PP, ora no PSD, ora no PS. E tínhamos o Cravinho na Obras Públicas, então sem a mesma compreensão que diz ter hoje do problema da corrupção. Veja-se http://www.ionline.pt/conteudo/17866-escandalos-da-democraciao-general-que-acusou-os-politicos-e-foi-condenado.
Ferraz da Costa, então presidente dos patrões de indústria, dos que vieram do condicionamento industrial para a asfixia democrática, aproveitou para afirmar, historicamente, que os empreiteiros estavam fartos de ter de pagar luvas para poderem trabalhar.
O General Garcia dos Santos, então Presidente da JAE, foi tratado como louco pelo actual campeão oficial da luta contra a corrupção, a Junta foi por ele desmantelada, impossibilitando qualquer investigação (do mesmo modos que a nacionalização do BNP - segundo disse o seu último presidente privado - teve o mesmo efeito). Mais tarde, reorganizada depois do desmantelamento, com o nome de Estradas de Portugal, lá consta da lista de nomes das empresas "corrompidas". Ou melhor, como me explicava um amigo meu, não são as empresas mas os funcionários que são corruptos. As empresas, essas, limitam-se a receber cronicamente gente alegadamente corrupta. Parece que mesmo no topo da administração.
Hoje em dia já ninguém se admira que o primeiro-ministro apareça próximo de todos os casos de corrupção que vêm a público. É a imparável e multifacetada "campanha negra". Mas quando se trata de distinguir o trigo do joio, aí está o Ministério Público a preferir a corrupção à extorsão como móbil do crime.
Claro que a corrupção não explica como um sério banqueiro aceita um suborno de 10 mil miseráveis euros. provavelmente menos do que um mês do seu salário. E a extorsão, essa sim, explicaria bastante bem: é um modo de vida, um vício, como o abuso de crianças: fica-lhes na pele e é compulsivo. E, segundo dizem os informadores dos jornalistas, produz esgares de prazer em quem recebe o dinheiro.
Mas é mais fácil fazer bode expiatório de quem enriqueceu angariando fundos para o polvo, para poder ter trabalho - evidentemente a forma de exploração que os políticos no poder, através dos partidos, encontraram para "dirigir"o país - do que tocar nos interesses instalados. Como o poderia fazer a PGR de outro modo, quando é estatutariamente representante do estado-a-que-as-coisas-chegaram junto do sistema de justiça?
Cabe a palavra aos juizes de instrução independentes e irresponsáveis. Ou será que desta vez vão ser responsáveis?

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

20 anos da queda do Muro (II)

Viram as celas das prisões da RDA? Celas são celas. Mas há 20 anos atrás, e vistas apenas de relance, não tem comparação com a degradação que por cá há.
Ouviram as queixas dos ex-presos sobre como usavam a família para os pressionarem? Precisamente o mesmo que por cá se queixam também pessoas presas: que abusam sexualmente das mulheres detidas, que lêem a correspondência e usam a informação de forma provocatória e chantagista, que procuram seduzir as namoradas ou mães ou irmãs, até de uma guarda que utilizava (não sei se ainda utiliza) o "posto" de apalpadeira oficial das visitas de uma prisão para abusar das mulheres que por lá passavam (de homens não se recebeu queixas).
Sei que o regime da RDA se fosse simpático e não quizesse forçar o nascimento do Homem Novo não seria abandona por tantos alemães. Sei que a polícia política e a vigilância dos dissidentes são repugnantes e não devem ser permitidas. Mas também sei que não estamos livres nem dos interesses privados dos políticos nem dos polícias nem dos sistemas repressivos.
Porque é que a queda do Muro não se comemora com luta pela liberdade?

20 anos da queda do Muro (I)

Os comunistas queixam-se de serem visados pela informação comemorativa do evento. Na Assembleia da República informam os jornalistas de uma iniciativa que antecipa o que o CDS/PP teria podido propor: alargamento das possibilidades de prisão preventiva e aumento do tempo de segredo de justiça. O pretexto é o combate à corrupção (como se ele estivesse a ser feito através do número de presos à disposição dos juízes).
Oito anos atrás, num dos primeiros Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, tive oportunidade de perguntar a uma mesa sobre "criminalização dos movimentos sociais", onde se denunciaram as perseguições e as brutalidades da polícia contra os activistas e a corrupção e politicação das acções policiais (na mesa estavam polícias federais brasileiros, autores de algumas dessas denúncias), se no outro mundo possível as prisões poderiam deixar de existir. As duas respostas que obtive foram definitivamente não. "Que fariamos a quem agora nos persegue?"
Definitivamente, o outro mundo possível de que preciso terá que não ter muros: nem em Berlim, nem na Palestina, nem na fronteira do México com os EUA, nem nas prisões. Há prisões sem guardas nem muros: http://www.apacitauna.com.br/. Sabia?

domingo, 8 de novembro de 2009

aumentam os suicidios na falta de moralidade

Uma jornalista pediu opinião sobre o parecer do sindicato dos guardas prisionais de a causa do aumento de suicídios nas prisões portuguesas ser o consumo de droga. Tinha acabado de propor a hipótese clássica da sociologia, Durkheim, de o aumento do suicídio ser causado pelo aumento da anomia (perda de relação com as regras sociais, as leis, os regulamentos, a moral social), decorrentes ambos da política prisional seguida nos últimos 8 anos de aumento dos regimes mais fechados (regimes ditos de segurança, de onde mais chegam queixas de maus tratos) culminada na abertura, ano e meio atrás, da prisão de "alta segurança" de Monsanto, a que alguém alcunhou de Guatanamo português.
A proibição da droga não só é a causa directa do grande número de presos como é, também, a grande desculpa passe-par-tout usada pelos responsáveis prisionais - e pelos políticos - para explicar todas as malfeitorias, incluindo as próprias. Porque não haviam os guardas de imitar os seus chefes? Tal como eles, aos guardas cabe, segundo eles próprios, o papel de observar os tráficos, consumos e conflitos inerentes às eventuais falta de pagamentos, não tanto para acabar com aquilo - porque de facto é impossível - mas para oferecer explicações encobridoras seja do envolvimento de funcionários e autoridades prisionais no tráfico ilícito - se fosse de outra maneira, no país das corrupções, é que seria de admirar - seja das perversidades quotidianas próprias das prisões e próprias dos regimes fechados.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Aumento de suicidios nas prisões portuguesas

A droga é um mercado florescente, principalmente nas prisões. A proibição de consumo e comercialização de certos produtos utilizados para modificar o estado mental das pessoas, com o objectivo moralista de censurar criminalmente certos comportamentos e, com eles, as tendências de contra-cultura vitoriosamente emergentes nos anos 60, é um filão para as polícias, as prisões, os terapeutas especializados, os traficantes. Mas é uma desgraça para os dependentes, tornados criminosos e obrigados à clandestinidade, e as suas famílias e amigos, principais vítimas desta política, entre o abandono dos seus doentes e o abandono das suas próprias vidas para tratar da doença, acossados por um mercado de curandeiros em que ninguém se entende e onde todos querem mandar.
A "cura" social engendrada por conspiradores de primeira água, leia-se Michael Woodwiss a esse respeito, tornou-se uma receita universal para dar trabalho às polícias e oportunidade aos políticos proibicionistas para manterem as suas mãos porcas na vida de todos e cada um. O proibicionismo contra a droga é a matriz fundadora das políticas de troca da liberdade individual pela segurança colectiva. Cuja racionalidade é a de meter na prisão quem trafica ou consome drogas ... e, uma vez lá dentro, serem intimados a continuar a consumir e traficar, mas a preços mais caros para uma qualidade pior dos esputefacientes e um risco agravado de sequelas para os consumidores, incluindo a subordinação aos poderes fácticos, degradação da saúde, risco de vida.
São óbvias, e nem sequer são escondidas, as responsabilidades dos funcionários do Estado na manutenção do mercado das drogas nas prisões. Como são óbvias as responsabilidades políticas num estado de coisas putrefacto - biológica e moralmente - em que a maioria se recusa a tocar. Pudicia de merda.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

ventiladores e conspirações

Pela primeira vez na história da humanidade está-se a seguir ao vivo ao evoluir de uma pandemia. Para os profissionais de saúde pública é uma oportunidade de fazerem valer as suas competências e os seus poderes. Para a população em geral é um grande susto. Apesar do conhecimento humano, os rumores, a confusão, o medo, o pânico imperam, seja no alarmismo oficial (contagens de infectados em tempo real como estratégia de transparência, falhada evidentemente) seja a nível popular, assim se sabe poder haver numa escola um foco infeccioso.
A humanidade contará nesta ocasião, para o melhor e para o pior, com as instituições e as relações sociais actuais. Tais estruturas não podem transformar-se demasiado para se adaptarem às novas circunstâncias, em periodos de tempo muito curtos e tão conservadores como aquele que vivemos.
Da mesma maneira que a crise financeira está a ser tratada em segredo, naturalmente também a crise pandémica é tratada da forma como os sistemas de saúde tratam comumente os doentes: como se a humanidade fosse um aglomerado de potenciais doentes numa sala de espera para serem atendidos pelos profissionais, a seu tempo.
Na verdade, o grande problema parece ser a falta de ventiladores. Embora o virus próprio da pandemia seja benigno, o facto de se alastrar muito rapidamente terá a consequência de trazer aos hospitais demasiados casos de doentes que sabem haver tratamento para as suas doenças, mas para os quais não existirão equipamentos suficientes para todos. Os dilemas éticos criados por esta situação (quais médicos terão o poder de decidir quem terá acesso aos ventiladores e quem não terá?) têm, obviamente, um potencial perturbador das instituições e da sociedade em geral. Numa sociedade de risco, será que vamos constatar não estarmos preparados - apesar dos conhecimentos e das tecnologias - para lidar com uma pandemia?
A questão não é apenas académica (seria bom que fosse levada a sério pelas academias, sim). É também levantada pelos protagonistas das teorias da conspiração: a) que parte da preparação da defesa contra a pandemia não é estratégia comercial das empresas de vacinas? b) pode o processo de liderança por parte das instituições de saúde ser utilizado pelos poderes globais firmados nas instâncias internacionais - e provavelmente também na Organização Mundial de Saúde - para radicalizar as políticas em moda de troca de liberdade por segurança? c) a informação a prestar às populações sobre a pandemia deve ser de tipo comercial, induzido comportamentos prescritos, ou deveria ser de tipo político, mobilizando a solidariedade e responsabilidade públicas e de cada um em função do bem estar geral?
Desqualificar os mensageiros destas perguntas por serem monges, doentes mentais ou outra coisa qualquer não desvaloriza as perguntas (ao contrário). Nem lhes dá resposta.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Dádiva é corrupção?

É certo haver uma relação directa entre a dádiva, como compensação por troca de favores, e, portanto, base de sistemas de corrupção da economia e da confirnaça social. Mas esta associação, sem mais comentários, "esquece" o papel do Estado na corrupção. Por definição - e não por acaso - corrupção depende de um agente do Estado estar envolvido num sistema de trocas de favores, por se poder suspeitar estar a utilizar a instituição como moeda de troca.
Usar os bens públicos para fins privados, eis o que é corrupção. Usar o Estado como fonte de privilégios, por ser funcionário público ou por ter protecção do Estado, eis o que é corrupção.
Sendo assim, a troca de favores entre particulares, desde que não faça intervir a extorção de bens públicos e a complacência do Estado, nada tem a ver com a corrupção. Terá a ver com simpatias pessoais, alianças sociais ou económicas, como formas de solidariedade saudáveis e desejáveis, mas não com corrupção.
Pelo contrário, a política, no sentido das decisões de favorecimento de certos sectores económicos em detrimento de outros, está bem mais próxima da corrupção do que a dádiva. Quando a política é casuística, sem ideologia, centrada nas "grandes empresas" dominadas por cliques sociais extremamente fulanizadas - BCP, BNP, BPP - ou por obscuras burocracias inquisitoriais - tipo sistemas de justiça, fiscal, de regulação de obras públicas ou municipais, bolsas financeiras, mercados energéticos - aí sim, por razões institucionais, a corrupção medra à vontade.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Qual medo?

Um diário dá conta das investigações sobre "alegados crimes de corrupção, tráfico de influências e branqueamento de capitais" http://dn.sapo.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1403588, envolvendo administradores de empresas públicas.
Umas semanas atrás, informado por um amigo de um caso semelhante, eventualmente o mesmo, passei a informação para outro amigo, quadro de uma das empresas públicas visadas. Recebi na volta uma resposta politicamente correcta e ilibatória de qualquer responsabilidade da empresa, admitindo abertura para aceitar a existência de "funcionários corruptos e ladrões". Era evidente o constrangimento - tinha-lhe enviado a informação pelo email da empresa; nem conheço outro - e havia pouco tempo que o Presidente da República se tinha queixado de eventuais escutas do governo às suas mensagens electrónicas.
Neste jogo se sombras, quem sabe quem  é quem? Poderá ser que eu esteja a querer "queimar" o meu amigo lá nas suas lutas intestinas? Se sim, porque não lhe bastaria não me responder nada? Porque sentiu necessidade de ilibar a "empresa"?
Evidentemente que, depois da minha gaffe - a de ter comunicado através da rede de emails da empresa -, não estou em condições de continuar a conversa com o meu velho amigo e esclarecer o assunto. Terá que ficar para mais tarde, quando todo este caso se resolver - daqui a muitos anos, como o assegura o funcionamento daquilo a que pomposamente chamamos Justiça.
Como diz uma outra pessoa dos meus conhecimentos, quando se descobriu a organização criminosa que liderava a sua empresa ocorreu uma limpeza, ordenada pelos accionistas. Nessa limpeza, porém, os funcionários que colaboraram com a administração criminosa tiveram o mesmo tratamento dos funcionários que não colaboraram e, por isso, certamente, foram prejudicados nas respectivas carreiras ao longo dos anos.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

sustentabilidade

O nosso modo de vida é frequentemente associado à crise ecológica. Há quem entenda ser esta mais uma expressão do "reencantamento" da Natureza do que uma avaliação cientificamente fundamentada da nossa condição. Para esses, a tendência para o equilíbrio é uma lei da natureza e as forças da natureza são incomensuráveis face ao menor poderio da humanidade - mesmo apetrechada de ciências e tecnologias. Para os menos ecologistas de entre nós, tudo não passa de modismos, de uma mania. Enfim, uma insegurança ontológica , eventualmente causada pela inusitada ânsia de saber (escola para todos? onde já se viu?) ou pelo impacto das notícias dos lobbys conservacionistas.
Na verdade, os cientistas qualificados estão de forma praticamente unânime de acordo em que o efeito de estufa e o aquecimento global são realidades, embora apenas 50% das informações noticiosas dêem conta de tais posições. Quer dizer: 50% de artigos de jornais (resultado de um estudo nos EUA) reflectem posições ultraminoritárias entre os cientistas, a maior parte das vezes sem fazerem referência a isso mesmo.
O encobrimento da insustentabilidade civilizacional do nosso modo de vida não é menos escandaloso. É impossível exportar para a China, para o Brasil, para a África do Sul e para a Índia os nossos hábitos consumistas, como está a acontecer, por razões energéticas, de arrumação de resíduos e de lixos, para não mencionar os direitos humanos. Porém tal coisa nem sequer é referida nem nos debates políticos - feitos à medida das nações e para consumo interno - nem nos jornais e outros meios de comunicação, a maioria aliados dos políticos neste "esquecimento" organizado. O inverso é propalado, afirmando-se a inevitabilidade daquilo que jamais irá acontecer: a chegada dos povos não ocidentais aos benefícios da vida moderna.
Na verdade, se se acabasse com a pobreza nos países ricos a insustentabilidade ecológica seria já muito mais evidente no quotidiano. Por exemplo, seria ainda mais dificil de esconder das novas gerações que, pela primeira vez em vários séculos, o que as velhas gerações esperam dos seus filhos é que desistam de acreditar nos valores dos seus progenitores? Reformas simpáticas para estes últimos (enquanto houver direitos adquiridos e paraquedas dourados) e seja o que Deus quizer para quem venha a seguir!

Gripe pandémica

Hoje arrancou a campanha de vacinação contra a gripe pandémica do pessoal de saúde em Portugal. Dizem as notícias, o director geral da saúde reconheceu que os 5% de profissionais de um hospital que se recusaram tomar a vacina pode ajudar à campanha contra a vacinação.
Reclama o alto funcionário não existir nenhum suporte científico para apoiar as posições adversas à vacinação.  Questionado sobre as lições e atirar da campanha de alerta no Inverno  do hemisfério Sul respondeu estar indisponível para comentar, embora adiantasse ser completamente diferente a gripe sazonal e a gripe pandémica, desde logo por serem diferentes as populações de risco em cada caso.
É extraordinário o temor do Estado perante avaliação que a opinião pública possa fazer de uma campanha de vacinação, dado o facto de ter sido este tipo de intervenções de saúde pública dos maiores contributos para a diminuição drástica da morbilidade no ocidente, nas últimas gerações.
É também estraordinário que, depois de declarado o nível 6 e máximo do alerta global pela Organização Mundial de Saúde, o Estados não possam argumentar ter sido esse estado de alerta a causa eficaz da minimização dos riscos de morbilidade efectiva provocados pela pandemia.
Mais do que uma crise de confiança, podemos muito bem estar a sentir sinais de uma crise de civilização: a) a ciência é trazida a terreiro não para fundamentar políticas mas para defender políticas; b) as acções do Estado não são avaliadas mas tão só desculpadas.

domingo, 25 de outubro de 2009

Durkheim e Adam Smith

A sociologia faz segredo das questões da moral, quando Durkheim a definiu, precisamente, como a ciência da moral e das instituições. Da mesma forma que a economia isolou o Adam Smith da Riqueza das Nações do mesmo autor dos estudos da moral (cf. Jack Barbalet (2008) Weber, Passion and Profits, Cambridge), também a sociologia isolou a moral e, com ela, grande parte das intuições de Durkheim, em especial a defesa da prioridade à moral (e à política, no sentido da difusão da moral) nos processos de desenvolvimento de modos de organização social.
O maior sucesso de Max Weber aconteceu quando ele mais se voltou para a sociologia, na sua Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Quando usou a intuição de Durkheim para a afirmar e desenvolver, com base na ideia actualmente de senso comum da superioridade moral dos protestantes e dos nórdicos relativamente aos católicos e do Sul. Não será altura, para os sociólogos do Sul, revisitarem esta sociologia abandonada por aí - e a fazer os seus estragos, nomeadamente de reforço da auto-alegada superioridade étnica dos ocidentais do Norte? Não nos cabe a nós, precisamente por sermos sociólogos, corrigir os males feitos?

Jovens e violência

Há dois caminhos para a justiça social:
1. Realista, ineficaz e contrproducente: acusar o fígado da cirrose, o sidoso, canceroso, leproso, toxicodependente das respectivas condições de enfermidade.
2. Moral e político eventualmente promotora de melhorias: assunção das responsabilidades dos mais fortes pela qualidade de vida dos mais fracos
(como propôs John Rawls).
É necessário assegurar aos jovens oportunidades de produzirem as respectivas novas identidades, em vez de os queremos reviver através deles, obrigando-os, as nossas próprias experiências de juventude. Para tal será necessário largarmos os nossos egoísmos legitimados com sentimentos de superioridade (de idade ou de condição ou de etnia), cada vez mais insustentáveis, e conquistarmos para a nossa civilização ocidental mais jovens, como aqueles que nos procuram (através dos flucos migratórios) e que estupidamente rechaçamos.

sábado, 24 de outubro de 2009

violência

Ultimamente ando às voltas com a violência.
No 9ª Congresso da ESA, o mês passado, uma colega francesa informou-me que em  França há muitos trabalhos de sociólogos sobre a violência. Felizmente a presidente da mesa, uma colega italiana especialista no tema, retorqui-lhe que eu teria mais razão: a sociologia ignora a violência.
Claro que há sociólogos que falam sobre violência. O problema que coloco é que a teoria social desconsidera a violência como actividade anti-social, produzindo uma desculpa (i)moral para si própria para evitar o assunto, entretanto cada vez mais actual. Nem sequer existe formulada uma subdisciplina reconhecida com o título sociologia da violência, essa é que é a verdade.
Para os sociólogos é mais cómodo poderem continuar a pensar a violência como uma actividade dos brutos, dos jovens, dos pobres, e assim ignorar a violência bem mais estrutural dos mercados, dos capitalismos e dos estados.

É preciso animar a malta

Começa a ser constrangedor não ter onde publicar o que vou escrevendo. Provavelmente não tem nenhuma importãncia, mas ainda assim há quem goste de ler (sabe-se lá porquê) e principalmente sinto haver alguma coisa de inovador naquilo que se constituiu no meu pensamento próprio. A sociologia não é, deste ponto de vista, um saber que alguns sabem e os outros admiram. A sociologia - que é a minha forma de expressão - é um modo de fazer a apologia da humanidade, simplesmente de forma partidariamente controlada: tornou-se uma ideologia de regime, embora de segunda linha.
A esperança que alimento, cada vez mais convencido, é a de que é possível do campo da sociologia emergirem ideias capazes de sustentarem os velhos ideais entretanto vilipendiados, em particular a moral da igualdade.
Vamos ver se este blog me anima.