Há casos que podem ser reveladores da ética (e da inércia) dominantes. Julgo que este é um dos casos. Passou-se comigo.
Um veiculo móvel identificado como Optimus a vender telefones TAG atraiu-me a atenção. Informado que por 20 Euros tinha direito a um telemóvel novo, 15 Euros de chamadas, um tarifário dos mais baratos, chamadas à borla entre TAG´s e um serviço disponível em 24 horas, comprei dois. O facto de não haver factura - por alegada falta de documentos na ocasião - não me preocupou, pois foi-me dito que a factura ser-me-ia remetida para a morada da residência.
Estava a partir do princípio - que vim a verificar ser equivocado - de estar a tratar com uma empresa com créditos no mercado, como se costuma dizer.
Em 36 horas percebi que o serviço não estaria disponível tão cedo, que era muito difícil e demorado encontrar interlocutor do lado da empresa para esclarecer seja o que for (experimentei o site respectivo e verifiquei que nada está previsto para permitir a comunicação), que o tarifário era mais próximo do dobro do valor usual para mim do que do tarifário mínimo.
Percebi ter-me enganado na decisão de compra e, utilizando a faculdade que a lei dá de anulação da compra/venda no prazo de 14 dias, tratei de devolver as caixas que tinha comprado.
Em vez da devolução do dinheiro recebo a devolução das caixas com o argumento de só o agente vendedor poderia receber a devolução. Para encurtar razões, na troca de correspondência que esforçadamente consegui manter lá foi implicitamente reconhecido que o agente vendedor era quem acabara de devolver a devolução mas, ao mesmo tempo, nenhuma alegação faria a empresa assumir as suas obrigações legais perante o comprador, que para mais era (e irá deixar de o ser na primeira oportunidade) cliente regular de serviços da empresa.
Fiquei a saber que a honorabilidade comercial da Optimus vale 40 Euros. Porque os paguei.
Para detalhes ver em http://iscte.pt/~apad/novosite2007/etica%20mercado.html
emergências instáveis
domingo, 9 de janeiro de 2011
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
Obrigado patrões: preferimos outros!
Uma parte importante de portugueses diz preferir ser governado pelo Estado espanhol ou pelo FMI. Perante isto um comentador televisivo que serve de guia espiritual a muita gente desvaloriza este desejo: “ É o velho espírito sebastianista!” – afirma. E repreende: não pensem que vos deixam livrar-se de sermos “nós” a tratarmos deste canto à beira mar explorado. Terão que continuar a escolher os políticos que bem entendam, entre aqueles que preferirem para eleger.
É a síndroma do escravo: o patrão da vizinha é sempre melhor que o meu. O problema é que eles estão todos combinados e recusam devoluções.
É a síndroma do escravo: o patrão da vizinha é sempre melhor que o meu. O problema é que eles estão todos combinados e recusam devoluções.
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Reemergência de sociedades de ordens
A modernização de um país periférico como Portugal faz-se de forma acelerada sempre que há ocasião para mais fortes contactos com o exterior. A cimeira da OTAN em Lisboa, no final de Novembro de 2010, trouxe pacifistas treinados na desobediência civil. E polícias treinados para enfrentarem desacatos de manifestantes violentos, cuja presença em Portugal nunca foi detectada. Eis um bom teste empírico para verificar qual seja a relação entre o Estado de Direito e o sistema prisional.
A observação da situação não foi difícil, pois a actividade esteve reduzida a dois episódios. O corte de uma via junto da cimeira por manifestantes que sujaram o chão e a si próprios com tinta, a sugerir sangue derramado pelos militaristas. Outros fixaram-se ao chão no mesmo local. Noutro local, a manifestação de pequenos grupos libertários e de pessoas de outras convicções foi cercada por polícias de choque, após serem impedidos de entrar na manifestação pela segurança própria da manifestação oficial.
No caso da manifestação contra o militarismo e a OTAN, dividida fisicamente entre partidos de esquerda e sindicatos devidamente identificados, tudo se passou segundo o modelo lógico da velha tradição inquisitorial, em que um juiz entregava o relaxado ao braço secular para o castigo – ao mesmo tempo que pedia misericórdia. Ao contrário desse tempo, como já tinha notado Foucault, o castigo não é público e representado como espectáculo mas antes privado e representado intramuros, como psico-drama. Neste caso a organização da manifestação emitiu um comunicado a hostilizar antecipadamente aderentes à mesma – equivalente ao relaxamento – sugerindo a reacção policial que vincará a imposição do respeito pela vontade política dos organizadores da manifestação de ostracizarem e estigmatizarem sectores considerados heréticos dos apoiantes da mesma causa.
Não é a primeira vez que tais desacatos ocorrem por iniciativa de organizadores de manifestações de esquerda em Lisboa. Pode referir-se, por exemplo, o modo como os dois partidos mais à esquerda do parlamento português impuseram a divisão entre si dos aderentes à possibilidade da construção da secção portuguesa do Fórum Social Mundial, organizando duas manifestações hostis e pondo aí um fim definitivo às actividades, logo no princípio da primeira década do século. Regularmente os raros e pequenos grupos de manifestantes não enquadrados política e sindicalmente são hostilizados pela organização de forma mais ou menos explícita. Mas não é costume saírem comunicados alarmistas contra estrangeiros e contra práticas por estes adoptadas. A polícia não costuma intervir como aconteceu no dia 20 de Novembro. E o que fez a polícia nesse dia?
A polícia desenhou no meio da Avenida da Liberdade uma prisão com cordões de polícias de choque fortemente armados. O trabalho da polícia, recém-treinada para acções repressivas, era por um lado mostrar uma força capaz de prevenir qualquer ideia de reacção por parte dos manifestantes e, por outro lado, evitar usar a violência sem aparente e evidente provocação de manifestantes, pois os olhos do mundo, através das câmaras de jornalistas, polícias e activistas, estavam postos naquele espaço em que os processos de estigmatização se constroem como se fossem arquitectura.
Cientes de tais contradições, alguns manifestantes exploraram-nas, tirando partido das posições de alheamento impostas aos guardas (que não falavam com ninguém a não ser de modo gestual e apenas recebiam ordens da sua hierarquia): faziam como se os guardas não fossem gente, utilizando os seus bastões como se fossem varas para dançar por de baixo, trocavam impressões com pessoas fora da cadeia como se os polícias ali não estivessem, passavam entre os polícias para dentro e fora da prisão (o que, às vezes, era impedido pela força e outras vezes funcionava sem reacção policial). Face à provocação policial de ameaçar com prisão os manifestantes, a tensão aumentou. Mas foi aliviada pelos comportamentos cómicos de contra-provocação e pelos ritmos percutidos por jovens artistas-manifestantes. A tensão e a provocação arriscaram tornar-se violência directa, mas não aconteceu.
Como nas prisões, há regras para cumprir. Apenas ninguém sabe quem, como, quando as faz cumprir, de absurdas e arbitrárias são tais regras não ditas. Apenas a autoridade ausente do terreno conhece tais regras, pois fabrica-as à medida da sua interpretação do que deve ser feito em cada momento, em função do comportamento de alheamento ou tensão de agentes e manifestantes. Nem os agentes nem os manifestantes, apesar de treinados, sabem efectivamente o que irá acontecer a seguir: a violência descontrolada ou a debandada. Fica tudo nas mãos de alguém a quem foi dado o poder de decisão, como aconteceu no fim da manifestação contra a guerra e contra a OTAN. A polícia debandou.
A manifestação oficial tinha sido rapidamente desmobilizada no fim da avenida e apenas ficou a prisão com alguns manifestantes dentro e outros fora, à espera do que pudesse vir a acontecer.
A organização da manifestação ganhou, pelo efeito de estigmatização dos anarquistas e das ideias de oposição distintas das tradicionais sobre o momento político – isso mesmo consta do comunicado dos organizadores, nomeadamente quando se insurge contra o destaque da comunicação social dado às acções espectaculares dos minoritários e amigos de práticas estrangeiras. O efeito mediático dos poucos activistas estrangeiros, esse, foi irresistível para a comunicação social, ou não estivéssemos numa sociedade do espectáculo. A prisão organizada pelo quadrado da polícia, porém, não foi mencionada.
Como ocorre com o sistema prisional, para o senso comum a restrição da liberdade, ainda que sem justificação plausível e evidente, é um direito que assiste aos agentes da autoridade, sem que a tensão gerada pela situação mereça debate público. Ou melhor, as causas de qualquer escalada violenta das situações de encarceramento serão geralmente debitadas aos reclusos, descontadas as causas mais estruturais e reduzidos os conflitos a desordens. A seu tempo, a situação poderá vir a ser ponderado judicial e politicamente – ou não.
Simbolicamente aquelas pessoas fechadas no quadrado estiveram excluídas da sociedade por serem consideradas perigosas: estavam a manifestar-se ilegalmente, isto é contra a vontade da organização da manifestação oficialmente reconhecida como sua proprietária. De onde, das duas uma, ou toda a manifestação se solidariza com os excluídos e defende a sua liberdade – o que não foi aqui o caso – ou a generalidade da manifestação simplesmente ignora (ou finge ignorar) que é gente com os mesmos direitos que segue à sua retaguarda. Evidentemente, a polícia e os manifestantes relacionam-se entre si em função das percepções difundidas sobre a realidade presente – quem são e onde estão os provocadores – e das estratégias próprias, de apresentação pública das respectivas identidades, vontades e capacidades.
No caso da desobediência civil intencionalmente organizada, as coisas correram como habitual: as tarefas de remoção dos activistas inertes foram deixadas à polícia – carregaram os corpos mortos com cuidado para não os aleijar, mas com dureza para os punir pelo incómodo e pela desobediência – e na sequência do espectáculo foram conduzidos à prisão de alta segurança de Lisboa, onde durante algumas horas ficaram isolados inclusivamente do contacto com advogados. (Nestes períodos de isolamento podem ocorrer situações de descontrolo emocional por parte das partes envolvidas, como sabe qualquer agente prisional que acontece aos recém-entrados, e também sabe o relator especial para a tortura da ONU, já que essa – a lei da incomunicação espanhola que autoriza o isolamento de alguns tipos de presos durante bastantes dias – é uma situação esse ligada a uma alta percentagem de denúncias de tortura no país vizinho).
Os Estados modernos controlam a contestação às suas políticas pressionando os limites do Estado de Direito, utilizando nomeadamente a diferença de rapidez de actuação entre o poder executivo – mais rápido – e o poder legislativo – mais lento – e explorando as divisões populares, nomeadamente a rivalidade entre partidos e as divisões sociais, em especial a situação dos excluídos. Como referem Jakobs e Meliá (2003) a prática do direito tende a aplicar-se nas sociedades actuais em três modos lógicos distintos: o direito para os mercados, em que as penas de prisão não são usadas, o direito para os integrados, em que as penas de prisão podem ser aplicadas, e o direito do inimigo, em que os direitos deixam de ser considerados: é como se os excluídos vivessem na prisão embora à solta. É nessa perspectiva – actuarial como dizem os anglo-saxónicos para a contraporem à perspectiva de utilização das penitenciárias para fins de reintegração social dos condenados – foram lançadas ideologias e tecnologias policiais sob a designação de tolerância zero, não aplicadas directa e estritamente em Portugal, segundo as quais qualquer acto de delinquência sinaliza um futuro criminoso e a sua liberdade passa a ser um risco conhecido para a sociedade (com direito a registo no Big Brother). Trata-se da versão globalizada da ideia salazarenta de que umas chapadas a tempo evitam males maiores.
Efectivamente o estado de direito pode estar a ser comprimido entre o mundo livre, onde grassa a ganância e a corrupção sem regulação, a que os norte-americanos chamam Wall Street, e o submundo dos under-dog (para voltar a usar um termo inglês) dos desqualificados, estigmatizados e reprimidos. Compressão agravada com a crise financeira de tal modo que a própria sociedade de classes fica secundarizada, juntamente com o respectivo estado de direito, face à reemergência de uma sociedade de ordens, à medida que os contratos sociais (negociação colectiva, concertação social, segurança social, partilha de riscos sociais, igualdade perante a lei) se transformam de objectivos de progresso em ambições insustentáveis.
A civilização da contenção incorporada da violência, descrita por Norbert Elias (??), pode estar a transformar-se numa sociedade penitenciária, como pressentiu Loïc Wacquant (2000??) ao analisar o Gulag norte-americano. Para os activistas do pacifismo europeus – herdeiros e continuadores dos que, durante a Guerra Fria, acusados de serem quintas colunas dos comunistas, diziam preferir viver vermelhos do que morrer – deve ser irónico serem os herdeiros dos comunistas em Portugal quem os vá relaxar à polícia. Sabem por experiência própria, experiência que não existe em Portugal com a mesma acuidade, que não é a violência directa ou a integridade propriedade o que os torna inimigos do Estado. O que os torna inimigos do Estado são as ideias que fazem ver as mesmas realidades e oportunidades de vida de outro modo, nomeadamente ver as prisões e os limites à livre iniciativa e ao empreendorismo que não sejam os virados para a exploração de terceiros, a promoção da ganância e do golpe económico sem consideração nem pela sociedade nem pelo meio ambiente, os mercados que não sejam protegidos pela força dos Estados e pelas conjuras políticas secretas. Nos países mais ricos da Europa, onde o Estado Social funciona regularmente há décadas, viver à margem da sociedade normal tornou-se uma opção de vida atraente para quem faça de crítica incorporada da sociedade normalizada e das respectivas contradições uma passagem ao acto. Por exemplo, tornando-se nómadas e, portanto, solidários com outros nómadas e a harmonização com a natureza que procuram e os acolhe.
As forças da ordem, caso queiram, podem estar informadas de que os anarquistas são o menor dos riscos, quanto se trate da defesa da integridade física das pessoas (Fonte: João Freire (2009) "De onde vem a violência" em A Ideia nº 66, Almada, Tipografia Lobão). Porém são sobretudo a etiqueta anarquia e os anarquistas os alvos – será precisamente por serem os menos potencialmente ofensivos? – da repressão policial global, quando se trata de cimeiras.
O Estado de Direito e a sociedade penitenciária
A racionalidade económica, isto é a prioridade à orientação dos serviços do Estado em função dos interesses económicos dominantes em cada altura, incluindo sobretudo os serviços de segurança e defesa (que pressupõem a persistência de causas permanentes de insegurança e ataque), é irracional do ponto de vista estritamente operacional. Se assim não fosse não teria valido o trabalho de subordinação dos poderes militares aos poderes civis. A racionalidade militar e bélica ao serviço do Estado é outra do que a que seria se apenas raciocinasse em função de objectivos operacionais.
O Estado de Direito é a expressão do desejo civilizador da democracia, isto é da prossecução das liberdades e da igualdade formais dos cidadãos, ainda que com limitações: apenas os nacionais a viver em território nacional podem aspirar a beneficiar de tal movimento. Com a globalização emergiu a esperança de qualquer pessoa poder passar a ser cidadã, independentemente do território em que esteja a viver em dado momento, o que passou a ser até um ponto de honra para os países ocidentais dominantes – impor a protecção dos Estados de origem a cidadãos em apuros no estrangeiro. No ocidente, também certos grupos de imigrantes passaram a ser reconhecidos como cidadãos iguais aos outros, para certas finalidades, em territórios de acolhimento, tendo-se mantido sempre alguma discriminação. Mas emergiram também riscos, aparentemente cada vez mais presentes, da perda generalizada de direitos de cidadania, umas vezes a pretexto de crises de segurança na sequência de ataques terroristas em solo ocidental, mais recentemente a pretexto das crises financeiras, primeiro da banca e depois dos Estados. À troca de liberdade por segurança soma-se a troca de solidariedade entre países da União Europeia por competição interna entre países e entre grupos sociais no interior dos países. Em vez de concertação social – por exemplo na negociação de políticas susceptíveis de gerar condições equilibradas de sustentação das economias – impõem-se decisões governamentais apoiadas parlamentarmente sem atender nem à constituição nem à jurisprudência – por exemplo a desvalorização unilateral de salários sem contrapartidas nem negociações, que mereceram reparo dos magistrados e negociações particulares do Estado com esse sector da sociedade – rachando o Estado moderno em dois, excluindo do centro os tribunais e, por maioria de razão, o Direito.
Vive-se um processo agudo de transformações sociais profundas e fora da capacidade de percepção comum, seja por tais transformações serem difusas, seja porque não ter um aspecto agradável aquilo que parece estar a acontecer e as pessoas terem a tendência de, nessas situações, preferirem manter o estilo de vida enquanto puderem do que antecipar os problemas, sabendo que provavelmente não serão capazes de os prevenir. A globalização está a dar força a países anteriormente dominados, o enorme poder militar usado de forma rudimentar pelo ocidente provou ser incapaz para impor a vontade dominante, as perspectivas de futuro para as sociedades são no mínimo incertas, a economia está dominada pela opacidade financeira gerada pela suposta transparência dos mercados, a lógica da divisão que permite que o lado unido prevaleça pende actualmente contra a civilização ocidental, a única civilização portadora da tradição do Estado de Direito.
Admitindo estarmos a assistir à decadência de um ciclo semi-milenar de domínio ocidental do mundo, apesar das enormes diferenças de poder económico e militar, o ocidente pode optar por privilegiar a economia – como está a fazer, na ocasião dando prioridade ao capital financeiro, apesar de se estar a constituir uma oposição para retomar o primado do capital produtivo – ou por privilegiar o melhor do seu modo de vida: a esperança de um mundo melhor fundado na liberdade e na igualdade, princípios tão naturalmente valorizados nestas paragens como estranhos noutras partes do mundo, incluindo nas culturas das potencias emergentes. A questão é a de saber como o Estado de Direito, a promoção institucionalizada ao mais alto nível dos princípios abstractos sempre por cumprir, pode ser respeitado, salvaguardado e melhorado, como forma de dádiva ao mundo e de salvaguarda do prestígio ocidental na luta pela realização prática de uma Humanidade, da igualdade do género humano. Será esse o caminho traçado actualmente?
A observação da situação não foi difícil, pois a actividade esteve reduzida a dois episódios. O corte de uma via junto da cimeira por manifestantes que sujaram o chão e a si próprios com tinta, a sugerir sangue derramado pelos militaristas. Outros fixaram-se ao chão no mesmo local. Noutro local, a manifestação de pequenos grupos libertários e de pessoas de outras convicções foi cercada por polícias de choque, após serem impedidos de entrar na manifestação pela segurança própria da manifestação oficial.
No caso da manifestação contra o militarismo e a OTAN, dividida fisicamente entre partidos de esquerda e sindicatos devidamente identificados, tudo se passou segundo o modelo lógico da velha tradição inquisitorial, em que um juiz entregava o relaxado ao braço secular para o castigo – ao mesmo tempo que pedia misericórdia. Ao contrário desse tempo, como já tinha notado Foucault, o castigo não é público e representado como espectáculo mas antes privado e representado intramuros, como psico-drama. Neste caso a organização da manifestação emitiu um comunicado a hostilizar antecipadamente aderentes à mesma – equivalente ao relaxamento – sugerindo a reacção policial que vincará a imposição do respeito pela vontade política dos organizadores da manifestação de ostracizarem e estigmatizarem sectores considerados heréticos dos apoiantes da mesma causa.
Não é a primeira vez que tais desacatos ocorrem por iniciativa de organizadores de manifestações de esquerda em Lisboa. Pode referir-se, por exemplo, o modo como os dois partidos mais à esquerda do parlamento português impuseram a divisão entre si dos aderentes à possibilidade da construção da secção portuguesa do Fórum Social Mundial, organizando duas manifestações hostis e pondo aí um fim definitivo às actividades, logo no princípio da primeira década do século. Regularmente os raros e pequenos grupos de manifestantes não enquadrados política e sindicalmente são hostilizados pela organização de forma mais ou menos explícita. Mas não é costume saírem comunicados alarmistas contra estrangeiros e contra práticas por estes adoptadas. A polícia não costuma intervir como aconteceu no dia 20 de Novembro. E o que fez a polícia nesse dia?
A polícia desenhou no meio da Avenida da Liberdade uma prisão com cordões de polícias de choque fortemente armados. O trabalho da polícia, recém-treinada para acções repressivas, era por um lado mostrar uma força capaz de prevenir qualquer ideia de reacção por parte dos manifestantes e, por outro lado, evitar usar a violência sem aparente e evidente provocação de manifestantes, pois os olhos do mundo, através das câmaras de jornalistas, polícias e activistas, estavam postos naquele espaço em que os processos de estigmatização se constroem como se fossem arquitectura.
Cientes de tais contradições, alguns manifestantes exploraram-nas, tirando partido das posições de alheamento impostas aos guardas (que não falavam com ninguém a não ser de modo gestual e apenas recebiam ordens da sua hierarquia): faziam como se os guardas não fossem gente, utilizando os seus bastões como se fossem varas para dançar por de baixo, trocavam impressões com pessoas fora da cadeia como se os polícias ali não estivessem, passavam entre os polícias para dentro e fora da prisão (o que, às vezes, era impedido pela força e outras vezes funcionava sem reacção policial). Face à provocação policial de ameaçar com prisão os manifestantes, a tensão aumentou. Mas foi aliviada pelos comportamentos cómicos de contra-provocação e pelos ritmos percutidos por jovens artistas-manifestantes. A tensão e a provocação arriscaram tornar-se violência directa, mas não aconteceu.
Como nas prisões, há regras para cumprir. Apenas ninguém sabe quem, como, quando as faz cumprir, de absurdas e arbitrárias são tais regras não ditas. Apenas a autoridade ausente do terreno conhece tais regras, pois fabrica-as à medida da sua interpretação do que deve ser feito em cada momento, em função do comportamento de alheamento ou tensão de agentes e manifestantes. Nem os agentes nem os manifestantes, apesar de treinados, sabem efectivamente o que irá acontecer a seguir: a violência descontrolada ou a debandada. Fica tudo nas mãos de alguém a quem foi dado o poder de decisão, como aconteceu no fim da manifestação contra a guerra e contra a OTAN. A polícia debandou.
A manifestação oficial tinha sido rapidamente desmobilizada no fim da avenida e apenas ficou a prisão com alguns manifestantes dentro e outros fora, à espera do que pudesse vir a acontecer.
A organização da manifestação ganhou, pelo efeito de estigmatização dos anarquistas e das ideias de oposição distintas das tradicionais sobre o momento político – isso mesmo consta do comunicado dos organizadores, nomeadamente quando se insurge contra o destaque da comunicação social dado às acções espectaculares dos minoritários e amigos de práticas estrangeiras. O efeito mediático dos poucos activistas estrangeiros, esse, foi irresistível para a comunicação social, ou não estivéssemos numa sociedade do espectáculo. A prisão organizada pelo quadrado da polícia, porém, não foi mencionada.
Como ocorre com o sistema prisional, para o senso comum a restrição da liberdade, ainda que sem justificação plausível e evidente, é um direito que assiste aos agentes da autoridade, sem que a tensão gerada pela situação mereça debate público. Ou melhor, as causas de qualquer escalada violenta das situações de encarceramento serão geralmente debitadas aos reclusos, descontadas as causas mais estruturais e reduzidos os conflitos a desordens. A seu tempo, a situação poderá vir a ser ponderado judicial e politicamente – ou não.
Simbolicamente aquelas pessoas fechadas no quadrado estiveram excluídas da sociedade por serem consideradas perigosas: estavam a manifestar-se ilegalmente, isto é contra a vontade da organização da manifestação oficialmente reconhecida como sua proprietária. De onde, das duas uma, ou toda a manifestação se solidariza com os excluídos e defende a sua liberdade – o que não foi aqui o caso – ou a generalidade da manifestação simplesmente ignora (ou finge ignorar) que é gente com os mesmos direitos que segue à sua retaguarda. Evidentemente, a polícia e os manifestantes relacionam-se entre si em função das percepções difundidas sobre a realidade presente – quem são e onde estão os provocadores – e das estratégias próprias, de apresentação pública das respectivas identidades, vontades e capacidades.
No caso da desobediência civil intencionalmente organizada, as coisas correram como habitual: as tarefas de remoção dos activistas inertes foram deixadas à polícia – carregaram os corpos mortos com cuidado para não os aleijar, mas com dureza para os punir pelo incómodo e pela desobediência – e na sequência do espectáculo foram conduzidos à prisão de alta segurança de Lisboa, onde durante algumas horas ficaram isolados inclusivamente do contacto com advogados. (Nestes períodos de isolamento podem ocorrer situações de descontrolo emocional por parte das partes envolvidas, como sabe qualquer agente prisional que acontece aos recém-entrados, e também sabe o relator especial para a tortura da ONU, já que essa – a lei da incomunicação espanhola que autoriza o isolamento de alguns tipos de presos durante bastantes dias – é uma situação esse ligada a uma alta percentagem de denúncias de tortura no país vizinho).
Os Estados modernos controlam a contestação às suas políticas pressionando os limites do Estado de Direito, utilizando nomeadamente a diferença de rapidez de actuação entre o poder executivo – mais rápido – e o poder legislativo – mais lento – e explorando as divisões populares, nomeadamente a rivalidade entre partidos e as divisões sociais, em especial a situação dos excluídos. Como referem Jakobs e Meliá (2003) a prática do direito tende a aplicar-se nas sociedades actuais em três modos lógicos distintos: o direito para os mercados, em que as penas de prisão não são usadas, o direito para os integrados, em que as penas de prisão podem ser aplicadas, e o direito do inimigo, em que os direitos deixam de ser considerados: é como se os excluídos vivessem na prisão embora à solta. É nessa perspectiva – actuarial como dizem os anglo-saxónicos para a contraporem à perspectiva de utilização das penitenciárias para fins de reintegração social dos condenados – foram lançadas ideologias e tecnologias policiais sob a designação de tolerância zero, não aplicadas directa e estritamente em Portugal, segundo as quais qualquer acto de delinquência sinaliza um futuro criminoso e a sua liberdade passa a ser um risco conhecido para a sociedade (com direito a registo no Big Brother). Trata-se da versão globalizada da ideia salazarenta de que umas chapadas a tempo evitam males maiores.
Efectivamente o estado de direito pode estar a ser comprimido entre o mundo livre, onde grassa a ganância e a corrupção sem regulação, a que os norte-americanos chamam Wall Street, e o submundo dos under-dog (para voltar a usar um termo inglês) dos desqualificados, estigmatizados e reprimidos. Compressão agravada com a crise financeira de tal modo que a própria sociedade de classes fica secundarizada, juntamente com o respectivo estado de direito, face à reemergência de uma sociedade de ordens, à medida que os contratos sociais (negociação colectiva, concertação social, segurança social, partilha de riscos sociais, igualdade perante a lei) se transformam de objectivos de progresso em ambições insustentáveis.
A civilização da contenção incorporada da violência, descrita por Norbert Elias (??), pode estar a transformar-se numa sociedade penitenciária, como pressentiu Loïc Wacquant (2000??) ao analisar o Gulag norte-americano. Para os activistas do pacifismo europeus – herdeiros e continuadores dos que, durante a Guerra Fria, acusados de serem quintas colunas dos comunistas, diziam preferir viver vermelhos do que morrer – deve ser irónico serem os herdeiros dos comunistas em Portugal quem os vá relaxar à polícia. Sabem por experiência própria, experiência que não existe em Portugal com a mesma acuidade, que não é a violência directa ou a integridade propriedade o que os torna inimigos do Estado. O que os torna inimigos do Estado são as ideias que fazem ver as mesmas realidades e oportunidades de vida de outro modo, nomeadamente ver as prisões e os limites à livre iniciativa e ao empreendorismo que não sejam os virados para a exploração de terceiros, a promoção da ganância e do golpe económico sem consideração nem pela sociedade nem pelo meio ambiente, os mercados que não sejam protegidos pela força dos Estados e pelas conjuras políticas secretas. Nos países mais ricos da Europa, onde o Estado Social funciona regularmente há décadas, viver à margem da sociedade normal tornou-se uma opção de vida atraente para quem faça de crítica incorporada da sociedade normalizada e das respectivas contradições uma passagem ao acto. Por exemplo, tornando-se nómadas e, portanto, solidários com outros nómadas e a harmonização com a natureza que procuram e os acolhe.
As forças da ordem, caso queiram, podem estar informadas de que os anarquistas são o menor dos riscos, quanto se trate da defesa da integridade física das pessoas (Fonte: João Freire (2009) "De onde vem a violência" em A Ideia nº 66, Almada, Tipografia Lobão). Porém são sobretudo a etiqueta anarquia e os anarquistas os alvos – será precisamente por serem os menos potencialmente ofensivos? – da repressão policial global, quando se trata de cimeiras.
O Estado de Direito e a sociedade penitenciária
A racionalidade económica, isto é a prioridade à orientação dos serviços do Estado em função dos interesses económicos dominantes em cada altura, incluindo sobretudo os serviços de segurança e defesa (que pressupõem a persistência de causas permanentes de insegurança e ataque), é irracional do ponto de vista estritamente operacional. Se assim não fosse não teria valido o trabalho de subordinação dos poderes militares aos poderes civis. A racionalidade militar e bélica ao serviço do Estado é outra do que a que seria se apenas raciocinasse em função de objectivos operacionais.
O Estado de Direito é a expressão do desejo civilizador da democracia, isto é da prossecução das liberdades e da igualdade formais dos cidadãos, ainda que com limitações: apenas os nacionais a viver em território nacional podem aspirar a beneficiar de tal movimento. Com a globalização emergiu a esperança de qualquer pessoa poder passar a ser cidadã, independentemente do território em que esteja a viver em dado momento, o que passou a ser até um ponto de honra para os países ocidentais dominantes – impor a protecção dos Estados de origem a cidadãos em apuros no estrangeiro. No ocidente, também certos grupos de imigrantes passaram a ser reconhecidos como cidadãos iguais aos outros, para certas finalidades, em territórios de acolhimento, tendo-se mantido sempre alguma discriminação. Mas emergiram também riscos, aparentemente cada vez mais presentes, da perda generalizada de direitos de cidadania, umas vezes a pretexto de crises de segurança na sequência de ataques terroristas em solo ocidental, mais recentemente a pretexto das crises financeiras, primeiro da banca e depois dos Estados. À troca de liberdade por segurança soma-se a troca de solidariedade entre países da União Europeia por competição interna entre países e entre grupos sociais no interior dos países. Em vez de concertação social – por exemplo na negociação de políticas susceptíveis de gerar condições equilibradas de sustentação das economias – impõem-se decisões governamentais apoiadas parlamentarmente sem atender nem à constituição nem à jurisprudência – por exemplo a desvalorização unilateral de salários sem contrapartidas nem negociações, que mereceram reparo dos magistrados e negociações particulares do Estado com esse sector da sociedade – rachando o Estado moderno em dois, excluindo do centro os tribunais e, por maioria de razão, o Direito.
Vive-se um processo agudo de transformações sociais profundas e fora da capacidade de percepção comum, seja por tais transformações serem difusas, seja porque não ter um aspecto agradável aquilo que parece estar a acontecer e as pessoas terem a tendência de, nessas situações, preferirem manter o estilo de vida enquanto puderem do que antecipar os problemas, sabendo que provavelmente não serão capazes de os prevenir. A globalização está a dar força a países anteriormente dominados, o enorme poder militar usado de forma rudimentar pelo ocidente provou ser incapaz para impor a vontade dominante, as perspectivas de futuro para as sociedades são no mínimo incertas, a economia está dominada pela opacidade financeira gerada pela suposta transparência dos mercados, a lógica da divisão que permite que o lado unido prevaleça pende actualmente contra a civilização ocidental, a única civilização portadora da tradição do Estado de Direito.
Admitindo estarmos a assistir à decadência de um ciclo semi-milenar de domínio ocidental do mundo, apesar das enormes diferenças de poder económico e militar, o ocidente pode optar por privilegiar a economia – como está a fazer, na ocasião dando prioridade ao capital financeiro, apesar de se estar a constituir uma oposição para retomar o primado do capital produtivo – ou por privilegiar o melhor do seu modo de vida: a esperança de um mundo melhor fundado na liberdade e na igualdade, princípios tão naturalmente valorizados nestas paragens como estranhos noutras partes do mundo, incluindo nas culturas das potencias emergentes. A questão é a de saber como o Estado de Direito, a promoção institucionalizada ao mais alto nível dos princípios abstractos sempre por cumprir, pode ser respeitado, salvaguardado e melhorado, como forma de dádiva ao mundo e de salvaguarda do prestígio ocidental na luta pela realização prática de uma Humanidade, da igualdade do género humano. Será esse o caminho traçado actualmente?
domingo, 18 de abril de 2010
resistirá a sociologia aos sociólogos?
Há, sem súvida, um problema de auto-estima entre os sociólogos. "Para que serve a sociologia?" é um tema que atrapalha muitos de entre eles, principalmente desde que a "teoria" da empregabilidade começou a ser pressionante. Vão para sociologia sobretudo mulheres que não apreciam particularmente matemática mas também não querem ir para "Letras". Aos sociólogos resta-lhes querem mudar o mundo, de preferência de imediato - assim ao estilo dos chamados "socretinos", mas mais ingénuos. Quando se trata de "mexer" no mundo, porém, demarcam-se dos economistas por serem manipuladores do Estado e das empresas, dos políticos por dependerem da opinião pública, dos psicólogos por tratarem casos pessoais. Fica-lhes o activismo da bondade (nuns casos mais institucional, noutros casos mais contra a pobreza) que podem partilhar uns com os outros, cegos que todos estão à "maldade" e à violência, deixada aos cuidados às forças de segurança (sobre as quais evitam comentários). Os sociólogos especializaram-se em serviços sociais. Ou melhor, em avaliar os serviços sociais prestados pelos outros, como os planeadores, os educadores, o pessoal de saúde, os assistentes sociais, os serviços de reintegração social, os animadores culturais, etc.
Num mundo em rápida transformação, colocam-se duas hipóteses: ou se acredita no valor de (certa) sociologia para ajudar o parto de mundos melhores - e nesse caso há que dar o corpo ao manifesto - ou se reconhecem as limitações de (certa) sociologia - para o que bastará guardar o espaço já conquistado até hoje e resistir aí, conforme se possa.
Por exemplo: pode muito bem a sociologia manter a sua especialização como descobridora e medidora de desigualdades sociais. Mas o que é preciso actualmente é revalorizar a igualdade social como valor, crença e significado capaz de orientar os saberes e as sabedorias. No primeiro caso basta aprender a trabalhar estatísticas. No segundo caso é preciso saber lutar por isso ao lado daqueles que já o fazem, em sociedade.
Num mundo em rápida transformação, colocam-se duas hipóteses: ou se acredita no valor de (certa) sociologia para ajudar o parto de mundos melhores - e nesse caso há que dar o corpo ao manifesto - ou se reconhecem as limitações de (certa) sociologia - para o que bastará guardar o espaço já conquistado até hoje e resistir aí, conforme se possa.
Por exemplo: pode muito bem a sociologia manter a sua especialização como descobridora e medidora de desigualdades sociais. Mas o que é preciso actualmente é revalorizar a igualdade social como valor, crença e significado capaz de orientar os saberes e as sabedorias. No primeiro caso basta aprender a trabalhar estatísticas. No segundo caso é preciso saber lutar por isso ao lado daqueles que já o fazem, em sociedade.
terça-feira, 23 de março de 2010
moral de classe
Uns poucos de jovens protegem outro, sentado numa esplanada de um café popular, de continuar a ser agredido por um homem: “Isso não se faz assim! Não é preciso isso!” – vão gritando enquanto se intrometem entre o agressor e o agredido. Este último, estonteado, procura reagir, sem saber como. Não se levanta da cadeira. Vai dizendo coisas sem nexo, como que à procura de uma resposta. O homem, tranquilo, exclama que se o que fez não bastou, voltará à carga. Por fim o rapaz levanta-se decidido e diz “São 10 Euros!” e dispõe-se a acompanhar o seu agressor, lá onde ficou por pagar essa quantia. “É da polícia” – explicava alguém a ninguém, como faz a voz off num filme. Não podia prescindir da sua profissão nem do seu bairro, mesmo fora das horas de serviço.
Todo o café se levanta para acompanhar com os olhos outra zaragata. Do outro lado da rua um jovem deixa-se travar na sua corrida por duas mulheres e chora enquanto pede para o libertarem (o que manifestamente não deseja). Comenta a assistência que se juntou à saída do café – “Isto hoje está animado! Então aquele anda de pistola à mostra?”
Na minha juventude também eu – com outros da minha idade – evitávamos pagar despesas de restauração (ou transportes) sempre que a oportunidade podia ser forjada. No meio de um grupo podia ser possível – de facto era-o sistematicamente – escapar ao empregado e fazer com que ele não controlasse a falta de pagamento de uma refeição. Noutros casos, em restaurantes menos frequentados por nós, toda a mesa se levantava – cada um à vez – para “ir à casa de banho”. Pior do que isso, a livraria Barata, que arriscava ter e vender livros proibidos pelo regime fascista, era alvo de furtos por parte dos estudantes progressistas à procura de literatura. Muitos de nós estamos hoje bem colocados na vida. Talvez porque nunca tivemos à perna polícias ao serviço – fora de serviço.
Alguns de nós trabalham mesmo ao serviço da banca e compreendem, melhor que ninguém, como a moral não policiada é outra coisa …
Todo o café se levanta para acompanhar com os olhos outra zaragata. Do outro lado da rua um jovem deixa-se travar na sua corrida por duas mulheres e chora enquanto pede para o libertarem (o que manifestamente não deseja). Comenta a assistência que se juntou à saída do café – “Isto hoje está animado! Então aquele anda de pistola à mostra?”
Na minha juventude também eu – com outros da minha idade – evitávamos pagar despesas de restauração (ou transportes) sempre que a oportunidade podia ser forjada. No meio de um grupo podia ser possível – de facto era-o sistematicamente – escapar ao empregado e fazer com que ele não controlasse a falta de pagamento de uma refeição. Noutros casos, em restaurantes menos frequentados por nós, toda a mesa se levantava – cada um à vez – para “ir à casa de banho”. Pior do que isso, a livraria Barata, que arriscava ter e vender livros proibidos pelo regime fascista, era alvo de furtos por parte dos estudantes progressistas à procura de literatura. Muitos de nós estamos hoje bem colocados na vida. Talvez porque nunca tivemos à perna polícias ao serviço – fora de serviço.
Alguns de nós trabalham mesmo ao serviço da banca e compreendem, melhor que ninguém, como a moral não policiada é outra coisa …
sexta-feira, 19 de março de 2010
Bullying institucional
Embora nada perceba de economia e da tão aclamada especulação que compreendem largas porções dos seus sectores, não posso deixar de ficar espantado por assistir a um chorrilho de ataques lançados em todas as direcções quando se sabe estar a encarar uma crise.
Aquando do aparecimento da crise económica internacional nos meios de comunicação nacionais, rapidamente se fez uma associação tida como clara com o sistema imobiliário americano. Este, “devido à especulação imobiliária” (sic) inundou os EUA e, segundo consta, o mundo económico, numa crise de proporções escabrosas.
Em Portugal, o nosso primeiro-ministro diz que, na Europa, estamos entre os que menos sofreram com a crise.
Reiterando que nada percebo de economia, mas apoiando-me nas informações acima citadas, que qualquer um pode ouvir ou ler nos media, parece-me estranho lembrarem-se agora que há problemas de dívidas públicas especialmente significativas em Portugal…
Podem agora perguntar-me, de onde aparece este comentário?
Pois bem, é isso que vou explanar de seguida. Na BBC e, provavelmente, em outras empresas especializadas em informar as populações, fala-se agora num grupo de países cujas situações económicas são catastróficas, de tal modo que até merecem um nome “carinhoso” – PIGS ou PIIGS.
Estas denominações não são mais que acrónimos/siglas:
• PIIGS – Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha (nota: o PIGS não inclui a Itália).
Devo confessar que, mesmo não sendo particularmente patriótico, me custa bastante este termo insultuoso que inclui este lindo país à beira-mar plantado... Mais ainda quando se afigura um contexto que sugere a necessidade de um bode expiatório (ou vários) para que os países mais desenvolvidos possam manter-se debaixo do “manto da invisibilidade”, pois a culpabilização e ataques serão entregues àqueles que, por infortúnio da sua dependência de outrem ou devido apenas à sua histórica falta de habilidade, são mais débeis.
Devo confessar que estando tão em voga uma atitude tão pró-activa na luta contra a violência, nomeadamente nas escolas, sinto-me transtornado com tão notório e ofensivo “bullying institucional”. Será que os psicólogos conseguiriam dar vazão a isto?!....
Joaquim Carlos
Aquando do aparecimento da crise económica internacional nos meios de comunicação nacionais, rapidamente se fez uma associação tida como clara com o sistema imobiliário americano. Este, “devido à especulação imobiliária” (sic) inundou os EUA e, segundo consta, o mundo económico, numa crise de proporções escabrosas.
Em Portugal, o nosso primeiro-ministro diz que, na Europa, estamos entre os que menos sofreram com a crise.
Reiterando que nada percebo de economia, mas apoiando-me nas informações acima citadas, que qualquer um pode ouvir ou ler nos media, parece-me estranho lembrarem-se agora que há problemas de dívidas públicas especialmente significativas em Portugal…
Podem agora perguntar-me, de onde aparece este comentário?
Pois bem, é isso que vou explanar de seguida. Na BBC e, provavelmente, em outras empresas especializadas em informar as populações, fala-se agora num grupo de países cujas situações económicas são catastróficas, de tal modo que até merecem um nome “carinhoso” – PIGS ou PIIGS.
Estas denominações não são mais que acrónimos/siglas:
• PIIGS – Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha (nota: o PIGS não inclui a Itália).
Devo confessar que, mesmo não sendo particularmente patriótico, me custa bastante este termo insultuoso que inclui este lindo país à beira-mar plantado... Mais ainda quando se afigura um contexto que sugere a necessidade de um bode expiatório (ou vários) para que os países mais desenvolvidos possam manter-se debaixo do “manto da invisibilidade”, pois a culpabilização e ataques serão entregues àqueles que, por infortúnio da sua dependência de outrem ou devido apenas à sua histórica falta de habilidade, são mais débeis.
Devo confessar que estando tão em voga uma atitude tão pró-activa na luta contra a violência, nomeadamente nas escolas, sinto-me transtornado com tão notório e ofensivo “bullying institucional”. Será que os psicólogos conseguiriam dar vazão a isto?!....
Joaquim Carlos
sexta-feira, 1 de janeiro de 2010
Balanço de a normalidade
Na aparência o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o Procurador-Geral da República – quem sabe se não foi com a intenção de proteger a justiça de mais uma vergonha – decidiram atirar para canto uma série de queixas-crime atiradas por órgãos próprios sedados em Aveiro. Mesmo o mais iletrado dos portugueses entendeu haver ali trafulhice. Os mais informados reclama que se classifique o processo: ou é administrativo ou é criminal? É que está num limbo para poder ser criminal no alcance e administrativo no tratamento. E este é um processo regulado ao mais alto nível das instituições judiciais. Poderemos imaginar o que se passa nos níveis ainda mais incompetentes da “justiça”.
No fundo do Estado uma prisão do Porto foi atacada por 3 centenas de GNR à procura de droga. Desde o director da cadeia até ao chefe de guardas, passando pela guarda prisional especial ao serviço da direcção geral dos serviços prisionais, ninguém é de fiar. Nenhuma explicação, ou sequer pedido de esclarecimento, mereceu esta aventura.
Para os que definem normal como o respeito pela norma, e criminoso o que falta de forma conhecida a alguma regra social básica inscrita no código penal, para esses estes dois casos, e sobretudo a realidade de que emergem, pura e simplesmente não existe. De facto, não pode existir. Quando os guardas das normas falham às normas a normalidade perde qualquer sentido e, das duas uma: a) a norma precisa de ser reafirmada – como gostam de dizer – e alguém terá de ser punido (mas quem? E como?); b) a norma não existe, pelo menos na formulação fácil mais utilizada pelos juristas básicos e seus seguidores.
Há ainda uma terceira hipótese, quiçá a mais provável: os Portugueses, por norma, especializaram-se em tornarem-se seguidores básicos de juristas básicos, sobretudo se bem colocados hierarquicamente. Se for esse o caso, porque é que os Portugueses se comportam como pessoas vítimas de abuso? A pergunta impõe-se: quem abusou e como dos Portugueses? Porque persiste a síndrome da Casa Pia? Porque fomos incapazes de tratar o assunto e como ele continua a emergir na nossa vida colectiva persistentemente?
No fundo do Estado uma prisão do Porto foi atacada por 3 centenas de GNR à procura de droga. Desde o director da cadeia até ao chefe de guardas, passando pela guarda prisional especial ao serviço da direcção geral dos serviços prisionais, ninguém é de fiar. Nenhuma explicação, ou sequer pedido de esclarecimento, mereceu esta aventura.
Para os que definem normal como o respeito pela norma, e criminoso o que falta de forma conhecida a alguma regra social básica inscrita no código penal, para esses estes dois casos, e sobretudo a realidade de que emergem, pura e simplesmente não existe. De facto, não pode existir. Quando os guardas das normas falham às normas a normalidade perde qualquer sentido e, das duas uma: a) a norma precisa de ser reafirmada – como gostam de dizer – e alguém terá de ser punido (mas quem? E como?); b) a norma não existe, pelo menos na formulação fácil mais utilizada pelos juristas básicos e seus seguidores.
Há ainda uma terceira hipótese, quiçá a mais provável: os Portugueses, por norma, especializaram-se em tornarem-se seguidores básicos de juristas básicos, sobretudo se bem colocados hierarquicamente. Se for esse o caso, porque é que os Portugueses se comportam como pessoas vítimas de abuso? A pergunta impõe-se: quem abusou e como dos Portugueses? Porque persiste a síndrome da Casa Pia? Porque fomos incapazes de tratar o assunto e como ele continua a emergir na nossa vida colectiva persistentemente?
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